Dança Somática

O que é?                                                                                                                                                                                                                                                   

Através da experiência somática, as células do corpo estão passando informações para o cérebro ao mesmo tempo em que o cérebro informa as células. A soma enxerga corpo e cérebro como um todo, como uma só unidade a ser trabalhada e explorada a partir das experiências e expectativas que vem de dentro, que partem do próprio corpo em questão (experiência pessoal).

Enquanto nosso corpo se move, sincronicamente move-se nossa mente. As qualidades de qualquer movimento são a manifestação de como a mente está se expressando através do corpo naquele exato momento. Mudanças na qualidade dos movimentos indicam que a mente possui distintos focos no corpo. Assim, podemos constatar que quando direcionamos a mente ou a atenção para diferentes partes do corpo e iniciamos movimentos a partir destas partes, nós mudamos a qualidade impressa no nosso movimento. Então, encontramos no movimento um caminho, uma forma de observar a qualidade de expressão e comunicação da mente através do corpo, e isso pode igualmente ser um caminho para trazer mudanças na relação corpo-mente.

Nosso corpo é essencialmente somático. Toda sua constituição fisiológica traz consigo, em cada peculiaridade celular, um correspondente psíquico-afetivo. Cada pequeno ou grande gesto, cotidiano ou cenicamente construído, é repleto de muitas possibilidades de leitura e interpretação somáticas. Afinal, nosso corpo é comunicação, é linguagem pura em movimento contínuo! Um simples ato de sentar-se, analisando deste o ritmo, escolha de postura, transferência de peso, até o tempo que permanece na posição, já podem fornecer valiosas informações sobre um corpo.

“A postura, portanto, não é uma coisa fixa. É tão flexível quanto o galho de um bambu  e profundo como suas raízes, o que permite que meu eixo oscile para frente e para trás, de acordo com meu estado físico-emocional. Porém, à grande flexibilidade deve corresponder uma enorme força e resistência. Assim como o bambu, o corpo humano tem a propriedade de dobrar-se sem se quebrar – quando respeitamos sua natureza colocamos em prática suas potencialidades.” Klauss Vianna.
 
Quando pensamos em Dança Somática, além de um trabalho que possa soar terapêutico, devemos pensar em um trabalho que possibilita um profundo e decisivo encontro consigo mesmo, no vislumbrar de um corpo integral, visceralmente integral. Um encontro com nossos contornos externos; constituição muscular, conexões ósseas, texturas da pele, conjuntamente com nossos tão desconhecidos contornos internos; líquidos como o sangue, suor, urina, linfa, saliva, a língua, o estômago, os rins, o útero, a próstata. Sentir uma parte do corpo é infinitamente distinto de SABER, de forma intelectual, que ela existe. Todos nós estudamos o corpo humano na escola, pesquisamos em livros e mapas cada região e órgão. Mas quantos de nós, de fato, SENTIMOS, acessamos o sentir de nossos rins, por exemplo? E o que isso tem a ver com dança?

Quando experienciamos a vivência de um simples toque nas escápulas gerar uma sensação de asas que brotam nas costas e nos faz voar em criatividade e consciência por um palco, percebemos que apenas executar um movimento, sem acolhê-lo nem apreendê-lo cinestesicamente, não faz mais sentido. O corpo “emburrece”, se enrijece, e assim caminha num caminho totalmente contrário ao da criação poética, ao da consciência sutil e profunda de si e do todo. Olhar para dentro pode ser feito através do verbo, mas também através do toque, este mais suave ou mais pontual, através de uma condução com o toque do outro, informações que chegam no corpo por caminhos musculares, conjuntivos, ao mesmo tempo que afetivos e culturais. Uma referência se acopla na outra para “abrir” o corpo e chegar no movimento, este conduzido ou composto, e assim trazer informações integrais aos invés de dissociadas. Assim, a pessoa acolhe o movimento e de fato o apreende, a articulação e o músculo criam aquela referência que fica impressa no nível celular e psíquico, trazendo uma inteligência ativa e permanente no corpo, possibilitando à pessoa autonomia e prazer nos movimentos criados.


Algumas proposições do trabalho (6 A’s):

- Acolher
O próprio corpo, sua constituição original e desmembramentos afetivos; tudo o que “chega” enquanto movimento e sinalização sutil.

- Acionar (Acordar)
As conexões ósseas(cabeça-cauda, ísquios-calcanhares, mão-escápula, assoalho pélvico e escapular), ritmo respiratório, líquidos internos, musculaturas profundas, planta do pé.

- Arredondar
Principio de circularidade e espiral de cada membro e órgão do corpo, “lubrificação” das articulações, trabalho com bolas de diferentes tamanhos e texturas que auxiliam na sensação de arredondamento primário do corpo.

- Afrouxar
Os pensamentos e ideias pré-concebidas acerca de si mesmo, os hábitos cotidianos, a respiração, o ritmo de cada movimento, as articulações. Ideia de disponibilidade corporal.

- Aterrar
Explorar nosso verdadeiro peso e densidade corporal, força gravitacional enquanto aliada do movimento, alinhamento vertebral com suas especificas curvaturas, relação do quadril e pés com o solo como uma pirâmide de força e sustentação da estrutura do corpo.

- Alegrar

O osso esterno (localizado no meio do peito) reorganizando o assoalho escapular e abrindo o chakra cardíaco, para assim irradiar uma postura positiva e ao mesmo tempo acolhedora para com a vida. Despertar o lúdico do corpo, as risadas contidas (e às vezes encolhidas) em cada articulação e vértebra.

 Dança Somática é prazer e alegria!

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A poética dos encontros:
Cada encontro entre educador e educando é o que chamo de presente. Ele é muito único, é o resultado da sinergia  estabelecida na relação entre os dois e o espaço. Sim, porque o espaço físico que acolhe o trabalho também é fundamental, é parte da química que se estabelece e dos caminhos que os corpos querem e precisam trilhar. Em muitos momentos, uma sala simples, com um chão adequado, luz natural, e sons acolhedores é o suficiente, é tudo o que o corpo precisa. Em outras ocasiões, isso pode variar...e então entra a criatividade e a disponibilidade do educador em propor outros espaços que tragam sensações e despertares distintos para o corpo a ser trabalhado. Por exemplo: praças, beira de rio, parques, terraços, topo de morro, enfim, lugares que possam além de causar um positivo e necessário estranhamento, trazer uma nova qualidade de movimentação corporal para ambos educador e educando.
Além disso, o tônus do trabalho é construído conjuntamente e diariamente. Há dias em que sentimos necessidade de deitar no chão e simplesmente respirar, localizar cada musculatura e deixar o solo acolher nossos incômodos, arredondar nossas verticalidades. Em outros, nos sentimos mais expansivos e queremos inundar a dimensão espacial, exercitar os limites de cada articulação, desafiar a gravidade, criar movimentos livremente. Tudo isso é visto, apreendido e acolhido como certo, como ritmo orgânico de cada particularidade corporal. Trabalhamos com a busca desta verdade corporal, que é única para cada ser, então não podemos impor um caminho, não podemos ditar um funcionamento sem levar em conta as referências que cada corpo construiu e continua construindo.
Aprecio muito os depoimentos compartilhados no início e final de cada encontro. Sei que muitas pessoas se expressam bem através do verbo, então não renego esta habilidade, eu acolho. Convido a pessoa a acoplar esta eloquência às células epidérmicas, por exemplo. Que trabalhe a palavra já tão elaborada intelectualmente, lá em um ponto da pele, ou da articulação. Não peço para o educando mandar a palavra embora...apenas convido-o a recolocá-la no corpo, deixar ela ganhar nova textura e sensação. Às vezes ficamos tão inundados de informações intelectuais que realmente não conseguimos apreende-las saudavelmente, não encontramos um mecanismo de elaboração para que ela seja de fato apreendida, e não apenas “aturdida”. Então a cinestesia do tom é um convite para esta elaboração. Sentir a palavra, sentir seu som e textura, sentir seu signicado...é muito diferente de pensar tão somente. Assim a palavra entra na célula, trazendo referencias sinestésicas e culturais. O verbo é acarinhado e encontra seu espaço no corpo.
Pés
Nestes depoimentos também são sinalizados desejos e incômodos, claro, que de alguma forma estavam já sinalizados na integralidade do movimento, mas que em voz alta tomam outra textura. Por exemplo, muitas pessoas encontram seu primeiro desafio no ficar descalças, no oferecer aos pés a conversa com o solo. Nossos pés nos dão apoio incondicional durante toda a vida, e quanto tempo investimos em olhar para eles, acarinhá-los, percebermos seus contornos e detalhes? Uma boa estrutura vertical começa por esta base, que são os pés. Acredito que todo trabalho de consciência corporal deva passar pelo conhecimento e desfrute desta relação com nossa base. Olhar, tocar, apertar, abrir, arredondar, reconhecer pontos de dor e prazer, enfim, acolher este membro essencial e tão sobrecarregado. Experimentar novas superfícies de contato, diferentes solos, distintas temperaturas...caminhar sobre a grama, deixar o pé conversar com ela, pisar sobre a terra seca e molhada, a areia quente, as pedras... É como desmembrar de um novo horizonte diante da possibilidade do sentir e do mover-se.
Chão
Precisamos criar uma relação harmônica com o solo que nos recebe para podermos fazer qualquer simples ato com sapiência e harmonia. Sentar e  deitar no chão, deixar o corpo desfrutar de inúmeros pontos de contato, descobrir um novo peso, amaciar a musculatura, lubrificar as articulações através de pequenos rolamentos, se arrastar, afundar, entregar! Entregar o peso, a densidade, a escuta. Virar o próprio chão. É uma viagem na descoberta de um corpo tridimensional, profundamente espiralado, infinito nas possibilidades de movimentação. Muitas vezes percebemos, através de um singelo deitar-se no solo, o quanto enrijecidos estamos, assim como quantos incômodos existem, latejando justamente no encontro destes pontos com a superfície “rija”. Entregar-se ao chão é um convite para nos integrarmos com todo e qualquer espaço e entorno que nos recebe, fazendo dele sempre um lugar de acolhimento.
Coluna Vertebral
Passamos bastante tempo do nosso dia pensando e sentindo ela...através de  dores, muitas vezes. Ela é o elo entre as partes mais pesadas e viscerais do nosso corpo, a cabeça e o quadril, a partir dela se irradiam nossos membros superiores e inferiores, nela estão presentes pontos nervosos essenciais, ela é a guardiã de nosso sistema respiratório. É bastante trabalho e responsabilidade! Por isso a expressão “carregar as dores do mundo nas costas”...dá e sobra. Carregamos sim nossos anseios, dores e prazeres em cada vértebra. É intrínseco. Mas o que fazemos com isso? Temos um infinito poder de transformação, e nossa coluna vertebral está necessitada de uma profunda reelaboração em sua estrutura! Mais arrendondada, mais acarinhada, mais compreendida, pois afinal o desconhecer é o que muitas vezes traz a repetição do equivoco, e é aí que podemos nos lesionar “inconscientemente” e nos distanciar desta relação feliz com nossas costas benditas e benquistas. E este conhecer é simples...quando trazemos o saber para o nível sensorial e integral. Lapidamos nossas experiências, nossas sensações impressas na memória da célula, e começamos uma nova relação, sem julgar a que existia anteriormente. A coluna cheia de memórias está sempre presente no trabalho. Cada pontinho que tocamos, cada movimento que sugerimos sempre traz uma porta aberta na nossa lembrança sinestésica. Isso acontece com todas as partes do nosso corpo, mas percebo que com a coluna isso fica mais latente. Então o trabalho é abrir, estar disponível para identificar estes pontos de lembrança, onde somos mais rijos, onde estamos mais abertos para o movimento, só acolhendo estes sinais, sem julgar, apenas reconhecendo e aceitando estas informações que corpo organicamente vai trazendo. Neste trabalho, é bem importante o tocar-se, o ser tocado e conduzido pelo educador, desfrutar do tanto de ar que temos dentro do corpo para expandir a musculatura interna da coluna assim como oxigenar algum nó ou ponto que está muito rijo, que está doloroso e difícil de abrir. Também as bolas são nossas aliadas e companheiras, auxiliando nesta abertura, no arredondamento, servindo como uma superfície de contato extremamente acolhedora e prazerosa.
A Educadora
É uma porta de escuta, uma janela que deixa o sol entrar e sair, uma membrana fina e sensível que transita entre o absorver e o nutrir. É um colo maternal, que acolhe, acarinha, ao mesmo tempo em que impulsiona e estimula o empoderamento de cada ser. É uma pele e intenção que toca, toca muito, nas células conjuntivas e nas psíquico-afetivas. Acredito muito no toque, e sei a falta que ele faz nos nossos dias. Um toque que olha, que cuida, que respeita, um toque verdadeiro que quer realmente desfrutar deste contato e aprendizado.